Eis aqui uma peripécia de quem um dia encontrou a razão da sua existência, mas ela lhe fora negada. Há milênios que sou o que sou, que ajo como ajo e muitos me questionam, muitos me adoram. Mas lhes respondo agora que se sou o que sou e ajo como ajo com orgulho e ódio é porque algo do meu direito me foi tirado. Ou talvez nunca tivesse sido realmente um direito. Demônios não tem direitos, os tem? Os tem. O direito da desordem. O direito de levar a loucura e a morte. Se achas o que digo insano - o fato de um demônio amar ou amar e não ter o direito, compara-me aos anjos. São somente o inverso. Somente. Porque para haver luz tem que haver escuridão. Se somente houvesse luz na nossa dimensão, seríamos cegos. Nem mesmo os anjos vivem só de luz, assim como nem mesmo demônios vivem só de escuridão.
Mas há algo que nos fora negado, igualmente.
Algo essencial numa súbita mudança de atos e personalidade. Algo que nos faria querer, desejar, ansiar, implorar por uma mudança de cargo - o que não poderia de alguma forma acontecer. Algo que nos deixaria agressivos como leões ou inofensivos como germes. Não que isso faça diferença para muitos de nós, porque vivemos milênios sem saber da existência desta pequena chama que só queima no sentido figurado: o amor.
Nos foi negado o amor.
Mas o pior - como castigo: Nos foi negado o amor, mas não a capacidade de amar.
Uma pequena humana suicida. Jogada no limbo. Questão de pouco tempo até que fosse decidido o seu lado. Uma pequena humana suicida que nada da vida sabia. Uma jovem em estatura e uma criança em mente. Não importava os motivos para que ela houvesse o feito. O que importava era que ela teria que pagar de algum modo, de acordo com a perfeita justiça de Deus. Perfeita justiça. Não importavam os motivos. Só importavam os atos. O flagrante.
De um lado eu. Do outro lado Gabriel.
O que a estúpida humana tinha que me chamava a atenção, era indagante. Algo nos olhos, em seus cabelos. Era estúpido pensar que uma criança humana guardasse segredos que iam além de sua vida naquela terra. Mas o brilho no olhar dela, o brilho de inteligência, de decadência e acima de tudo - reconhecimento. Ela não parecia estar surpresa ao seu estado. Duvidei da minha sanidade ao ver aquele brilho nos seus olhos. O que nela havia para que o velho demônio ficasse incapacitado de desviar seus olhos do dela? Obviamente ela não me enxergava. Mas ela olhava diretamente a mim, com o brilho de reconhecimento.
Pousei meus olhos sobre seus longos cabelos negros, caindo e dando voltas sobre seu corpo nu. Os lábios avermelhados libidinosos entreabertos. Me aproximei lenta e vagamente. o suficiente para que ela me tocasse. O suficiente para perceber que ela me olhava sim, e diabos, como olhava! Ela ergueu sua mão e eu fui de encontro a ela. Nossos dedos singelamente se entrelaçaram. No entanto... No entanto, no entanto! Que tormenta! Gabriel bruscamente a puxou, como se salvasse a sua vida, como se a a livrasse de uma doença. E ela se foi. Para nunca mais.
A razão dela ter enxergado a mim daquela vez nunca chegou ao meu conhecimento. Talvez houvesse sido Deus me dando uma fagulha de esperança, de modo a dizer que tudo não estava perdido. Ou talvez fosse tudo uma pequena brincadeira de mau-gosto.
Seu amor era tão puro, tão puro que Deus o enxergou como se estivesse iluminado por mil velas. Achou-a digna de subir e torná-la um anjo, como se fosse um presente e não um castigo.
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